“Ecce homo!”
Texto completo da pregação do Pe. Raniero Cantalamessa, OFM
Cap, Basílica de São Pedro
Acabamos de ouvir o relato do julgamento de Jesus perante
Pilatos. Há nele um momento que nos pede uma atenção especial.
“Pilatos mandou então flagelar Jesus. Os soldados teceram de
espinhos uma coroa, puseram-na sobre a sua cabeça e o cobriram com um manto de
púrpura. Aproximavam-se dele e diziam: Salve, rei dos judeus! E davam-lhe
bofetadas. Pilatos saiu outra vez e disse-lhes: Eis que vo-lo trago fora, para
que saibais que não acho nele nenhum motivo de acusação. Apareceu então Jesus,
trazendo a coroa de espinhos e o manto de púrpura. Pilatos disse: Ecce homo!
Eis o homem!” (Jo 19,1-5).
Entre as muitas
pinturas que retratam o Ecce Homo, há uma que sempre me impressionou. É de Jan
Mostaert, pintor flamengo do século XVI, e está na National Gallery de Londres.
Tentarei descrevê-la. Ela nos ajudará a imprimir melhor na mente o episódio, já
que o pintor transcreve fielmente, em cores, os dados do relato evangélico,
especialmente do relato de Marcos (Mc 15,16-20).
Jesus tem na cabeça
uma coroa de espinhos. Um feixe de arbustos espinhosos que estava no pátio,
talvez para fazer fogo, deu aos soldados a ideia dessa cruel zombaria da sua
realeza. Da cabeça de Jesus descem gotas de sangue. Sua boca está semiaberta,
como que lutando para respirar. Sobre os ombros, sulcados pelos golpes recentes
da flagelação, um manto pesado e desgastado, mais próximo da lata que da
estopa. Ele tem os pulsos amarrados por uma corda grosseira; em uma das mãos,
eles colocaram um pedaço de pau a fazer as vezes de cetro e, na outra, um feixe
de varetas, símbolos que ridicularizavam a sua majestade. Jesus não pode mover
sequer um dedo; é o homem reduzido à total impotência, o protótipo de todos os
algemados da história.
Meditando sobre a
Paixão, o filósofo Blaise Pascal escreveu certa vez estas palavras: “Cristo
está em agonia até o fim do mundo: não podemos dormir durante este tempo”[1].
Há um sentido em que estas palavras se aplicam à pessoa de Jesus mesmo, ou
seja, à cabeça do corpo místico e não apenas aos membros. Não apesar de Ele ter
ressuscitado e estar vivo, mas justamente porque Ele ressuscitou e está vivo.
Deixemos de lado, no entanto, este significado misterioso demais para nós e
falemos do sentido mais claro daquelas palavras. Jesus está em agonia até o fim
do mundo em cada homem ou mulher submetidos aos mesmos tormentos. “Vós o
fizestes a mim” (Mt 25, 40): Ele não disse esta frase apenas sobre quem
acredita nele; ele a disse sobre cada homem e cada mulher famintos, nus,
maltratados, presos.
Ao menos por uma vez,
não pensemos nos males sociais, coletivos: a fome, a pobreza, a injustiça, a
exploração dos fracos. Desses males já se fala muitas vezes, embora nunca o
suficiente, e há o risco de se tornarem abstrações. Categorias, não pessoas.
Pensemos agora no sofrimento dos indivíduos, das pessoas com nome e identidade
concreta; nas torturas decididas a sangue frio e infligidas voluntariamente,
neste exato momento, por seres humanos contra outros seres humanos, inclusive
crianças.
Quantos “Ecce homo”
no mundo! Meu Deus, quantos “Ecce homo”! Quantos prisioneiros na mesma condição
de Jesus no pretório de Pilatos: sozinhos, algemados, torturados, à mercê de
soldados ásperos e cheios de ódio, que se entregam a todo tipo de crueldade
física e psicológica, divertindo-se em ver sofrer. “Não podemos dormir, não
podemos deixá-los sós!”.
A exclamação “Ecce homo!” não se aplica somente às vítimas,
mas também aos carnífices. Ela quer dizer: eis aqui do que o homem é capaz! Com
temor e tremor, digamos ainda: eis do que somos capazes nós, homens! Muito
distante da marcha inexorável do Homo sapiens sapiens, o homem que, segundo
alguns, nasceria da morte de Deus e tomaria o seu lugar[2].
* * *
Os cristãos não são,
certamente, as únicas vítimas da violência homicida que há no mundo, mas não se
pode ignorar que, em muitos países, eles são as vítimas marcadas e mais
frequentes. Jesus disse um dia aos seus discípulos: “Chegará uma hora em que
aqueles que vos matarem julgarão estar honrando a Deus” (Jo 16, 2). Talvez
estas palavras nunca tenham achado na história um cumprimento tão pontual
quanto hoje.
Um bispo do século
III, Dionísio de Alexandria, nos deixou o testemunho de uma Páscoa celebrada
pelos cristãos durante a feroz perseguição do imperador romano Décio: “Eles nos
exilaram e, sozinhos entre todos, fomos perseguidos e lançados à morte. Mas,
ainda assim, celebramos a Páscoa. Todo lugar em que se sofria tornou-se para
nós um lugar de celebração da festa: fosse um acampamento, um deserto, um
navio, uma pousada, uma prisão. Os mártires perfeitos celebraram a mais
esplêndida das festas pascais ao ser admitidos no banquete celeste”[3]. Será
assim para muitos cristãos também na Páscoa deste ano, 2015 depois de Cristo.
Houve alguém que teve
a coragem de denunciar, como leigo, a indiferença perturbadora das instituições
mundiais e da opinião pública em face de tudo isto, lembrando a quais
consequências essa indiferença já levou no passado[4]. Corremos todos o risco,
tanto instituições quanto pessoas do mundo ocidental, de ser Pilatos que lavam
as mãos.
A nós, no entanto,
não é permitido fazer qualquer denúncia neste dia. Trairíamos o mistério que
estamos celebrando. Jesus morreu gritando: “Pai, perdoa-os, porque não sabem o
que fazem” (Lc 23, 34). Esta oração não é simplesmente murmurada; é gritada
para ser bem ouvida. Na verdade, não é sequer uma oração, mas uma exigência
imperativa, feita com a autoridade de quem é Filho: “Pai, perdoa-os!”. E como
Ele mesmo disse que o Pai escuta todas as suas orações (Jo 11,42), devemos
acreditar que Ele ouviu também esta última feita na cruz, e que, portanto,
aqueles que crucificaram o Cristo foram perdoados por Deus (é claro que não sem
antes se arrependerem de alguma forma) e estão com Ele no paraíso,
testemunhando para toda a eternidade o ponto até o qual pode chegar o amor de
Deus.
Essa
ignorância, como tal, estava só nos soldados. Mas a oração de Jesus não se
limita a eles. A grandeza divina do seu perdão consiste no fato de que o perdão
também é oferecido aos seus inimigos mais ferozes. É para eles que Jesus alega
a desculpa da ignorância. Mesmo que eles tenham agido com astúcia e malícia,
eles realmente não sabiam o que faziam, não pensavam que estavam crucificando um homem que era de fato o
Messias e Filho de Deus! Em vez de acusar os seus adversários, ou de os perdoar
confiando ao Pai Celestial o cuidado de vingá-lo, Ele os defende.
Seu exemplo sugere
aos discípulos uma generosidade infinita. Perdoar com a sua mesma grandeza de
alma não pode envolver simplesmente uma atitude negativa, de renunciar a querer
o mal para quem faz o mal; deve traduzir-se, em vez disso, em uma vontade
positiva de lhes fazer o bem, mesmo que apenas com uma oração dirigida a Deus
em seu favor. “Orai por aqueles que vos perseguem” (Mt 5, 44). Esse perdão não
deve procurar compensação nem sequer na esperança de um castigo divino. Deve
ser inspirado por uma caridade que desculpa o próximo, mesmo sem fechar os
olhos para a verdade, e que tenta parar os maus para que eles não façam mais
mal aos outros nem a si mesmos.
Quereríamos dizer:
“Senhor, o que nos pedes é impossível!”, mas Ele nos responderia: “Eu sei. E
morri para vos dar o que vos peço. Não vos dei apenas o mandado de perdoar, nem
apenas um exemplo heroico de perdão; com a minha morte, eu vos dei a graça que
vos torna capazes de perdoar. Eu não deixei ao mundo apenas um ensinamento
sobre a misericórdia, como tantos outros também deixaram. Eu sou Deus e, para
vós, fiz brotarem da minha morte rios de misericórdia. Deles podeis beber a
mãos cheias no Ano Jubilar da Misericórdia que tendes pela frente”.
* * *
Então, indagará alguém, seguir a Cristo é sempre um
resignar-se passivamente à derrota e à morte? Pelo contrário! “Tende coragem”,
disse Ele aos apóstolos antes da Paixão: “Eu venci o mundo” (Jo 16, 33). Cristo
venceu o mundo vencendo o mal do mundo. A vitória definitiva do bem sobre o
mal, que se manifestará no fim dos tempos, já aconteceu, de fato e de direito,
na cruz de Cristo. “Esta é hora do juízo deste mundo” (Jo 12, 31). Desde aquele
dia, o mal é o perdedor: tanto mais perdedor quanto mais parece triunfar. O
mundo já foi julgado e condenado em última instância, com sentença inapelável.
Jesus derrotou a
violência sem opor a ela uma violência maior ainda, e sim sofrendo-a e
revelando toda a sua injustiça e inutilidade. Ele inaugurou um novo tipo de
vitória, que Santo Agostinho resumiu em três palavras: “Victor quia victima” –
“vencedor porque vítima” [5]. Foi ao “vê-lo morrer assim” que o centurião
romano exclamou: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!” (Mc 15, 39).
Os outros se perguntavam o que significava o alto brado que Jesus tinha dado ao
morrer (Mc 15, 37). O centurião, que era experiente em lutas e lutadores,
reconheceu de imediato que aquele era um grito de vitória[6].
O problema da
violência nos persegue, nos choca, inventando formas novas e espantosas de
crueldade e de barbárie. Nós, cristãos, reagimos horrorizados à ideia de que se
possa matar em nome de Deus. Alguém poderia objetar: mas a Bíblia também não
está cheia de histórias de violência? Deus mesmo não é chamado de “Senhor dos
Exércitos”? Não é atribuída a Ele a ordem de exterminar cidades inteiras? Não é
Ele quem decreta, na Lei mosaica, numerosos casos de pena de morte?
Se tivessem dirigido
a Jesus, durante a sua vida, esta mesma objeção, Ele certamente teria
respondido o que respondeu sobre o divórcio: “Foi por causa da dureza do vosso
coração que Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas no princípio não foi
assim” (Mt 19,8). Também sobre a violência, “no princípio não foi assim”. O
primeiro capítulo do Gênesis mostra um mundo onde a violência não é sequer
pensável, nem dos seres humanos entre si, nem entre homens e animais. Nem
sequer para vingar a morte de Abel, e assim punir um assassino, é lícito matar
(cf. Gn 4, 15).
O genuíno pensamento
de Deus é expresso pelo mandamento “Não matarás”, e não pelas exceções abertas
na Lei, que são concessões à “dureza do coração” e dos costumes dos homens. A
violência, depois do pecado, infelizmente faz parte da vida; e o Antigo
Testamento, que reflete a vida e deve servir à vida, procura pelo menos, com a
sua legislação e com a própria pena de morte, canalizar e conter a violência
para que ela não se degenere em arbítrio pessoal[7].
Paulo fala de uma
época caracterizada pela “tolerância” de Deus (Rm 3, 25). Deus tolera a
violência como tolera a poligamia, o divórcio e outras coisas, mas educa o povo
para um tempo em que o seu plano original possa ser “recapitulado”, como para
uma nova criação. Esse tempo chega com Jesus, que, na montanha, proclama:
“Ouvistes o que foi dito: olho por olho, dente por dente; mas eu vos digo: não
resistais aos malvados; se alguém vos bater na face direita, oferecei também a
outra… Ouvistes o que foi dito: amai o vosso próximo e odiai o vosso inimigo;
eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”
(Mt 5,38-39; 43-44).
O verdadeiro “sermão
da montanha” que mudou o mundo, no entanto, não é aquele que Jesus fez um dia
sobre uma colina da Galileia, mas aquele que Ele proclama agora,
silenciosamente, na cruz. No Calvário, Ele pronuncia um definitivo “não!” à
violência, opondo a ela não apenas a não-violência, mas o perdão, a bondade e o
amor. Se ainda houver violência, ela já não poderá, sequer remotamente,
remontar a Deus e revestir-se da sua autoridade. Fazer isto significa
retroceder na ideia de Deus a estágios primitivos e grosseiros, superados pela
consciência religiosa e civil da humanidade.
* * *
Os verdadeiros
mártires de Cristo não morrem com os punhos cerrados, mas com as mãos juntas.
Tivemos tantos exemplos recentes! Foi Ele que, aos 21 cristãos coptas mortos
pelo Estado Islâmico na Líbia em 22 de fevereiro, deu a força para morrerem
murmurando o Seu nome. Rezemos nós também:
“Senhor Jesus Cristo, oramos pelos nossos irmãos de fé que
são perseguidos e por todos osEcce homo que estão, neste momento, sobre a face
da terra, cristãos e não cristãos. Maria, tu, ao pé da cruz, te uniste ao Filho
e murmuraste com Ele: “Pai, perdoa-os”. Ajuda-nos a vencer o mal com o bem, não
só no grande palco do mundo, mas também na vida cotidiana, dentro da nossa
casa. Tu, que, “ao sofrer com teu Filho que morria na cruz, colaboraste de modo
tão especial para a obra do Salvador com a obediência, a fé, a esperança e a
caridade ardente”[8], inspira nos homens e mulheres da nossa época pensamentos
de paz, de misericórdia e de perdão. Que assim seja”.
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