Lamento por um rio
José Eduardo Agualusa
Quando um rio morre, morre tudo o que há nele, todo o
chão que ele atravessa
“Conheço rios/
conheço rios antigos como o mundo e mais remotos/ que a corrente de sangue
humano/ em veias humanas” — escreveu Langston Hughes num dos seus poemas
mais famosos, “O Negro fala sobre Rios”. O verso seguinte é, creio, a chave do
poema: “A minha alma tornou-se profunda como os rios.”
A história da
Humanidade corre paralela à dos rios. Quase todos os grandes rios geraram ao
longo das suas margens grandes cidades. “Quem ofende um rio, ofende Deus” — diz
um provérbio africano. Quando um rio morre, morre tudo o que há nele, e todo o
chão que ele atravessa. Surpreende-me que a tragédia do Rio Doce não provoque
mais emoção e mais revolta, quer dentro, quer fora do Brasil. A mim chocou-me,
como o pior dos ataques terroristas.
“Foi um acidente” —
dizem. Acidente é quando o freio falha e um carro bate contra outro. Acidente é
quando alguém escorrega numa casca de banana e cai de costas. Grandes desastres
ambientais, como os que ocorreram em Chernobyl, em Fukushima, em Bhopal ou em
Minamata, não são acidentes. São o resultado quase inevitável de políticas
públicas equivocadas ou de estratégias privadas gananciosas, ou de ambas as
coisas.
Impressionou-me o
depoimento de uma mulher do povo Krenak: “O rio já sabia que ia ser morto”,
disse ela: “Quando a sujeira veio, ele foi subindo chorando, fazendo barulho. E
minha mãe chorando junto”.
Se o rio conhecia o seu
destino, quem o matou também deveria conhecer — e com décadas de avanço.
A boa notícia é que os
rios são muitíssimo mais resistentes que as pessoas. A História mostra que
havendo vontade política, e meios para tal, é possível ressuscitar rios
biologicamente mortos. Lembremos o que se passou com o Tâmisa. No século XVI, a
poluição do Tâmisa, ao atravessar Londres, era já tal que a população evitava
consumir a sua água. Em meados do século XIX, após duas grandes epidemias de
cólera, foi construída uma rede de captação de esgotos que atirava os dejetos
da cidade alguns quilômetros a jusante. O rio ganhou então a alcunha de “The
Great Stink” (O Grande Fedor). Nos anos 50 do século passado, quando já não
havia nem um peixe nas águas do Tâmisa, surgiram as primeiras estações de
tratamento de esgotos. O aparecimento de salmões, duas décadas depois, causou
comoção e confirmou que era possível devolver a vida ao rio. Hoje não só há
salmões e mais de uma centena de outras espécies de peixes, como também focas.
Até golfinhos se arriscam, vez por outra, a visitar a capital inglesa. Em 2006,
uma baleia perdida, com cerca de cinco metros de comprimento, morreu durante
uma tentativa de resgate, após ter subido o rio até a Ponte de Battersea, no
centro de Londres.
O fotógrafo e
ambientalista Sebastião Salgado fala em três décadas para recuperar o Rio Doce,
e numa operação que custaria ou custará — vamos escrever “custará” — perto de
R$ 100 bilhões. São números enormes, mas, ainda assim, talvez pequem por
defeito. Salgado acredita que as empresas envolvidas na morte do rio pagarão,
sem discutir, os custos da sua recuperação. Esperemos que sim. Não pagarão,
isso é certo, as vidas destruídas das populações ribeirinhas e as culturas e
tradições que se irão perder. Os custos de toda esta imensa tragédia ainda mal podem
ser avaliados.
Respondendo à pergunta
de um jornalista, Sebastião Salgado recusou-se a atribuir responsabilidades a
uma empresa em particular, dizendo que deveríamos questionar, sim, o nosso modo
de vida. Tem razão; só não tem a razão toda. É preciso investigar,
responsabilizar, julgar e condenar. E é preciso também que comecemos a
questionar o nosso modo de vida. Se o nosso modo de vida leva à morte de rios,
então nem é um modo de vida, é um modo de morte.
Em menino eu tive um
rio. O meu rio era pequeno e manso e tão humilde que nem sequer usava um nome.
Mas, como o de Alberto Caeiro, era mais livre e maior que qualquer rio do
mundo. Era tão grande que ainda hoje deságua em mim e me alimenta, com o
mistério das suas areias movediças, o milharal alto onde brincávamos de
esconde-esconde, o grave alarido das rãs, o cantar dos pássaros, e todos os
sonhos que erguemos junto às suas margens. Acho que, para uma criança, ter um
rio é tão importante quanto ter um cachorro. Os rios são laços de água que nos
prendem ao chão da nossa infância. Os rios, como sugerem os versos de Langston
Hughes, aprofundam-nos a alma.
23 de novembro de 2015.
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